No Acórdão n.º 174/2020 (rel.: Maria de Fátima Mata-Mouros), o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação do artigo 4.º da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, do artigo 144.º, n.ºs 1, 7 e 8, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, com o disposto nos artigos 286.º, 294.º e 295.º do Código Civil, e artigo 195.º do CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho segundo a qual é nulo o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível”.
1. O caso
O arguido foi condenado pelo Tribunal da Comarca de Leiria, por acórdão proferido em 13.07.2015, por um crime de homicídio qualificado, em pena prisão de 16 anos. Interpôs recurso no dia 01.10.2015, o terceiro dia útil subsequente ao termo do prazo de que dispunha para recorrer. Fê-lo através da remessa do recurso por correio electrónico. Passado 5 dias, em 06.10.2015, entregou esse recurso em suporte de papel.
O recurso foi rejeitado, por extemporâneo, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, com fundamento na inexistência de base legal, no âmbito do processo penal, para apresentação de peças processuais através de correio electrónico. Considerou-se inaplicável a jurisprudência do Ac. do STJ .º 3/2014, por se entender que se encontra ultrapassada pela introdução do novo Código de Processo Civil de 2013. Nessa linha, concluiu a Relação de Coimbra que o acto de apresentação do recurso por e-mail foi nulo e só deveria ser tomada em conta a apresentação realizada em suporte de papel, já fora do prazo, o que a levou a proferir acórdão de rejeição do recurso.
Foi dessa decisão que o arguido recorreu para o Tribunal Constitucional. O Ministério Público junto do TC manifestou-se a favor da procedência do recurso.
A situação discutida junto do Tribunal Constitucional já não se colocará, em regra, no âmbito da fase de julgamento do processo penal, dado que nela, actualmente, as peças processuais deverão ser apresentadas através da plataforma Citius. Mas continua a ter interesse nas fases preliminares do processo e na fase do recurso, designadamente, naqueles casos em que nos tribunais superiores ainda não se admita a utilização do sistema Citius.
2. A pronúncia do Tribunal Constitucional
2.1 A norma sindicada
O TC identificou como norma a considerar a norma que comina com nulidade o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal.
2.2 As normas constitucionais mobilizadas
O TC enquadrou o problema no âmbito do artigo 20.º da Constituição (Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva), “que garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4)” (11.).
Nessa perspectiva, densificando o disposto no art. 20.º/4 da CRP, o TC considerou que a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo não é incondicionada: o legislador não está autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (12.). Nesse contexto, acrescentou o TC, “deve ser controlado se os ónus processuais impostos pelo legislador são funcionalmente adequados aos fins do processo, traduzindo-se numa exigência puramente formal e arbitrária, destituída de qualquer sentido útil e razoável, bem como se as cominações ou preclusões que decorram do seu incumprimento se revelam totalmente desproporcionadas perante a gravidade e relevância da falta”. Ponto que implicará, portanto, um controlo à luz do princípio da proporcionalidade.
Na linha da jurisprudência constitucional anterior (Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07 e 462/2016), foram indicados como parâmetros do juízo de proporcionalidade: “a justificação da exigência processual em causa; a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus”.
2.3 O juízo de inconstitucionalidade
Mais do que a questão de saber se há justificação para que entre os meios legalmente previstos para a apresentação de peças processuais em juízo penal não conste o correio electrónico, entendeu o TC que o problema a considerar deveria ser antes um outro: o de se será (constitucionalmente) legítimo qualificar como nulo um recurso penal entregue através de correio electrónico, sem que ao recorrente seja concedida uma oportunidade para o entrega através de outro meio (13.). Isto, quando “ao tempo da prática do ato afigurava-se controverso determinar, com a devida segurança, qual o regime jurídico aplicável à apresentação do requerimento de recurso, em sede de processo penal”.
O TC concluiu no sentido da inconstitucionalidade, em tributo da ideia de que “a imposição de um ónus que não resulta claro perante a letra de lei, sendo por isso de difícil cumprimento pelas partes, cuja inobservância é a perda imediata e irremediável de um importante direito de defesa processual, como é o direito ao recurso, não respeita, com efeito, o processo justo”.
Estando em causa um direito com especial protecção constitucional, como é o direito ao recurso de decisões condenatórias penais (art. 32.º/1 da CRP), valerá a premissa, insistentemente acentuada pela jurisprudência constitucional, de que “em situações em que o não cumprimento, ou o cumprimento defeituoso, de certos ónus processuais pelo arguido é susceptível de implicar a perda definitiva de direitos ou a preclusão irremediável de faculdades processuais, se deveria equacionar a prévia formulação de convite ao arguido para suprimento da deficiência” (14.). Com o que acabou por considerar que “cominar, sem mais, com o vício de nulidade, o ato de apresentação, tempestivo, através de correio eletrónico, do recurso, em sede de processo penal, se afigura desproporcionado”.
2.4 O veredicto
O TC julgou, assim, o recurso procedente e qualificou a norma que, ao tempo dos autos, cominava com nulidade o recurso apresentado pelo arguido a juízo, por correio eletrónico, dentro do prazo, no âmbito do processo penal, sem prévio convite à apresentação daquela peça processual pela via considerada exigível, como inconstitucional por ferir, de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, na modalidade de direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, e artigo 18.º da Constituição). E, em conformidade, determinou, em 11.03.2020, a remessa ao Tribunal da Relação de Coimbra, para que este conheça o recurso penal interposto em 01.10.2015.