No Acórdão n.º 843/2022, o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre a constitucionalidade do crime de inflicção de maus tratos a animal de companhia, de novo no sentido da inconstitucionalidade. A fiscalização de constitucionalidade coube desta vez à 1.ª Secção do Tribunal, que, porém, decidiu a questão em termos substancialmente distintos da linha adoptada pela 3.ª Secção (vd. Acórdão n.º 867/2021 e Acórdão n.º 781/2022).
O juízo de inconstitucionalidade da incriminação emitido pela 3.ª Secção do TC vem assentando na ideia de que não há um bem jurídico directa ou indirectamente dotado de um referente constitucional que legitime esta criminalização (cf. Miguel João Costa, Criminalising Maltreatment of Companion Animals, 2022), ocorrendo por isso violação do disposto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição.
Outro foi o fundamento de que a 1.ª Secção lançou mão para, no Acórdão n.º 843/2022, concluir pela inconstitucionalidade. Proclamando a sua adesão ao pensamento do direito penal do bem jurídico que o Tribunal há muito acolhe, entendeu a maioria que não há razão para, quanto a esta incriminação, negar a existência de um bem jurídico com lastro constitucional, o bem-estar animal. Isto, sem, todavia, esclarecer em que concreta norma constitucional esse bem jurídico radica. Considerou-se que “basta uma simples leitura do mesmo [texto constitucional] para concluir que ela não contém, literal e expressamente, qualquer normativo de onde se possa retirar, de forma direta e explícita, a proteção do bem-estar dos animais (de companhia), não sendo, portanto, os animais considerados, de forma explícita, como objeto de tutela jurídico-constitucional”. De modo que a solvabilidade constitucional da incriminação estaria dependente de “uma proteção [constitucional] indireta ou reflexa do bem-estar animal”. Não apresentando embora uma clara explicitação de qual afinal o espaço constitucional que dá respaldo ao bem jurídico “bem-estar animal” – a dignidade da pessoa humana? o ambiente? a solidariedade? – o certo é que não foi pela falta de bem jurídico com relevo constitucional que o Tribunal concluiu pela inconstitucionalidade.
Colocando-se do lado dos votos de vencido dos Conselheiros Joana Fernandes Costa e Gonçalo de Almeida Ribeiro nos Acórdãos da 3.ª Secção, o Acórdão n.º 843/2022 afirmou a inconstitucionalidade da incriminação em matéria de maus tratos de animais de companhia com base na ideia de que “esta norma penal não cumpre as exigências mínimas de determinabilidade da lei penal decorrentes do princípio da legalidade acolhido no artigo 29.º, n.º 1 da CRP”.
Temos, enfim, um Tribunal profundamente dividido neste domínio. De entre os que já tomaram parte em decisões sobre a questão, há uma maioria no sentido da inconstitucionalidade, ora com fundamento na ausência de bem jurídico (Conselheiros João Pedro Caupers, Lino Ribeiro e Afonso Patrão), ora com fundamento na violação do princípio da legalidade criminal (Conselheiros João Pedro Caupers, Pedro Machete, Joana Fernandes Costa, Gonçalo de Almeida Ribeiro e Maria Benedita Urbano). E pela não inconstitucionalidade pronunciaram-se os Conselheiros J. A. Teles Pereira e José João Abrantes. Para quando uma decisão em Plenário?