Um “take” sobre a desobediência no estado de emergência

Respondendo a um desafio da ELSA Coimbra, gravei uma apresentação sobre os crimes de desobediência no âmbito do estado de emergência: https://www.youtube.com/watch?v=Wc2k3udhBjE&t=4s

No essencial, parece-me que, nesta matéria, há a considerar o seguinte:

1. No período do estado de emergência justificado pela pandemia da doença COVID-19 (18.03.2020 – 02.05.2020), foi à figura do crime de desobediência que o Governo recorreu para reforçar a efectividade das prescrições que emitiu para execução da declaração do estado de emergência e respectivas renovações decididas pelo Presidente da República[1] e autorizadas pela Assembleia da República[2].

2. A execução do estado de emergência foi concretizada pelo Governo através de três Decretos, emitidos ao abrigo do art. 199.º/g) da Constituição (competência administrativa): o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março (correspondente à declaração do estado de emergência: 22.03.2020 a 02.04.2020); o Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de Abril (correspondente à primeira renovação do estado de emergência: 03.04.2020 a 17.04.2020); e o Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de Abril (correspondente à segunda renovação do estado de emergência: 18.04.2020 a 02.05.2020).

Nesses três Decretos estabeleceu-se que constitui crime de desobediência a violação da obrigação de confinamento imposta aos doentes com COVID-19, aos infectados com o vírus SARS-Cov2 e aos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância activa (art. 3.º dos Decretos[3]).

Os três Decretos previram ainda que as forças e serviços policiais e de segurança encarregados de fiscalizar o cumprimento do que neles fosse determinado pudessem emanar ordens[4] e proceder à cominação e à participação por crime de desobediência[5], nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, nos casos de violação das normas relativas ao encerramento de instalações e equipamentos, à suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho, à suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços e ao confinamento obrigatório previsto no art. 3.º

3. Na consideração destas distintas formas de responsabilidade penal por desobediência, parece-me útil recorrer a uma chave de leitura que distinga entre crimes de desobediência em sentido próprio e crimes de desobediência em sentido impróprio[6].

Os crimes de desobediência em sentido próprio são os directamente cobertos pelo disposto no art. 348.º do CP. O seu (mínimo) denominador comum é a existência de uma ordem dada por uma autoridade ou um funcionário a um particular para que adopte um determinado comportamento. Crimes que pressupõem, portanto, a transmissão de um concreto comando para a realização ou não de um certo acto. Se houver uma previsão legal que imediata e directamente estabeleça que a desobediência a uma tal ordem fará o desobediente incorrer na prática de um crime de desobediência, valerá então o disposto no art. 348.º/1/a) do CP. Se não, para que a desobediência adquira relevância criminal, será imprescindível que o emissor da ordem advirta o destinatário da mesma de que se lhe não obedecer praticará um crime de desobediência (art. 348.º/1/b) do CP).

Estaremos já perante crimes de desobediência em sentido impróprio nos casos em que o legislador invoque o crime de desobediência para punir criminalmente a prática de um dado comportamento por si esgotantemente definido e que não carece da mediação de uma ordem da autoridade para possuir significado criminal. Nesses casos, ora se prevê que o infractor responderá pela prática de um crime de desobediência, ora se estabelece que será punido com a pena prevista para o crime de desobediência. Nestas hipóteses, em que não se faz depender a punição do não acatamento de uma ordem emitida por uma autoridade, o crime de desobediência é um mero acessório de que o legislador se serve, tratando-se, por isso, de crimes de desobediência em sentido impróprio. Nesse sentido, o bem jurídico aí tutelado não será, em regra, como sucede na desobediência em sentido próprio, a autonomia intencional do Estado, mas antes o interesse que pode ser ofendido pelo comportamento tipificado e que o legislador visou salvaguardar.

4.         É à figura da desobediência em sentido impróprio que me parece dever ser reconduzida a violação do confinamento obrigatório imposto aos doentes com COVID-19, aos infetados com o vírus SARS-Cov2 e aos cidadãos sob vigilância activa. Como se viu, o art. 3.º dos Decretos do Governo n.ºs 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020 qualificou essa violação como crime de desobediência.

Como é evidente – e foi já sublinhado e fundamentado por Alexandre Oliveira[7] e António Brito Neves[8] – estes Decretos do Governo, aprovados ao abrigo da sua competência administrativa (art. 199.º, al. g), da CRP), não são um meio apropriado para a tipificação de um crime. De acordo com o princípio da legalidade criminal (arts. 29.º/1 e 165.º/1/c) da CRP), a criminalização de uma conduta só será constitucionalmente legítima e admissível mediante Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo, aprovado, no exercício da função legislativa, sob autorização da Assembleia da República.

Deste modo, das duas, uma: ou as previsões de responsabilidade penal por desobediência constantes do art. 3.º dos mencionados Decretos do Governo não fazem mais do que enunciar ou declarar a existência de um crime de “desobediência” que lhes pré-existe, ficando assim a salvo da inconstitucionalidade; ou, pelo contrário, têm um carácter inovador, criminalizando ex novo a violação do confinamento obrigatório, e são irremissivelmente inconstitucionais, por afronta ao princípio da legalidade criminal (arts. 29.º/1 e 165.º/1/c) da CRP).

A base normativa na qual poderão, porventura, considerar-se abrigadas as normas aprovadas pelo Governo que qualificam a violação do confinamento obrigatório como crime de desobediência será o art. 7.º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (Lei n.º 44/86): “A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência”. Se se puder concluir, o que está longe de ser isento de dúvidas[9], que aquelas normas relativas ao confinamento obrigatório se limitam a reiterar uma responsabilização penal que sempre já decorreria daquele art. 7.º da Lei n.º 44/86, poderão escapar àquele juízo de inconstitucionalidade.

Estas dúvidas sobre a validade constitucional formal e orgânica da responsabilização por desobediência prevista no art. 3.º dos mencionados Decretos do Governo ficarão a pairar sobre os muitos processos penais abertos durante o estado de emergência por violação do confinamento obrigatório e passarão, por certo, a ser um foco da litigância processual nos próximos anos. Tudo o que poderia e deveria ter sido evitado com a previsão criminal deste facto através de Lei da Assembleia da República ou de Decreto-Lei do Governo autorizado pela Assembleia da República.

5. Julgo que as demais previsões de responsabilidade penal por desobediência constantes dos Decretos do Governo n.ºs 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020 não merecem as reservas apontadas supra ao caso da violação do confinamento obrigatório.

As normas em questão limitavam-se a prever a possibilidade de as forças de fiscalização acompanharem as ordens transmitidas para cumprimento das regras relativas ao encerramento de instalações e equipamentos, à suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho, à suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços da cominação de que a desobediência às mesmas faria os destinatários incorrer na prática de crime de desobediência. Nada que não pudesse já decorrer, a meu ver, do disposto no art. 348.º/1/b) do CP.

Parece-me, aliás, que, durante o estado de emergência, não havia impedimento a que tanto as autoridades de saúde, como as forças e serviços policiais e de segurança ordenassem, sob cominação da prática de crime de desobediência, aos portadores da doença COVID-19, aos infectados com o vírus SARS-CoV2 e aos cidadãos sob vigilância activa que cumprissem o confinamento obrigatório a que estavam sujeitos. Nesse sentido, ordens dadas por essas entidades a tais pessoas para que se mantivessem no domicílio ou a ele regressassem, quando encontradas fora dele, poderiam implicar uma responsabilização por crime de desobediência nos casos em que não fossem cumpridas. Ponto é que, em momento prévio ao seu não acatamento, tivessem tais ordens sido reforçadas pela cominação de que a sua inobservância implicaria a prática de um crime de desobediência. Deste modo, nas situações em que tal tenha sucedido, uma conclusão no sentido na inconstitucionalidade do art. 3.º dos Decretos do Governo n.ºs 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020, não comprometerá a possibilidade de punição por crime de desobediência, fundada no art. 348.º/1/b) do CP, de quem tenha desobedecido a uma ordem para cumprir o dever de confinamento previsto naquele art. 3.º

Nada parecendo acrescentar ao art. 348.º/1/b) do CP, o sentido útil das normas dos Decretos do Governo n.ºs 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020 que se referiram à cominação por crime de desobediência[10], terá sido, assim, então, o de delimitar os casos em que as forças de segurança poderiam mobilizar o regime do crime de desobediência para reforçar a efectividade das ordens dadas no âmbito do seu papel fiscalização do cumprimento das regras de execução do estado de emergência definidas naqueles Decretos.

O que significa que não seria legítima a realização dessa cominação em relação ao eventual incumprimento de ordens que não se referissem ao encerramento de instalações e equipamentos, à suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho, à suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços e ao confinamento obrigatório previsto no art. 3.º daqueles Decretos do Governo. Ordens dadas à margem destes domínios não poderiam implicar uma punição por desobediência. O que não quer dizer, naturalmente, que não pudessem ser dadas e que não devessem ser obedecidas. Simplesmente, quando não acatadas, não poderiam conduzir a uma responsabilização criminal por desobediência.

6. É este o sentido que agora se deverá atribuir ao disposto na alínea d) do n.º 6 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, de 30 de Abril, actualmente em vigor, no âmbito da situação de calamidade. As forças e serviços policiais e de segurança podem dar ordens e concomitantemente cominar que a desobediência implicará a prática de um crime de desobediência quando tais ordens se refiram ao confinamento obrigatório, ao encerramento de instalações e estabelecimentos e à suspensão de actividades de comércio a retalho e de prestação de serviços.


[1] Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março (declaração do estado de emergência: 18.03.2020 a 02.04.2020); Decreto do Presidente da República n.º 17-A/2020, de 2 de Abril (1.ª renovação do estado de emergência: 03.04.2020 a 17.04.2020); Decreto do Presidente da República n.º 20-A/2020, de 17 de Abril (2.ª renovação do estado de emergência: 18.04.2020 a 02.05.2020).

[2] Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18 de Março; Resolução da Assembleia da República n.º 22-A/2020, de 2 de Abril; e Resolução da Assembleia da República n.º 23-A/2020, de 17 de Abril.

[3] Artigo 3.º (Confinamento obrigatório)

1 – Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio:

a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2;

b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.

2 – A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência.

[4] Art. 32.º/1/b) do Decreto n.º 2-A/2020.

[5] Art. 32.º/1/b) do Decreto n.º 2-A/2020; art. 43.º/1/d) do Decreto n.º 2-B/2020; e art. 46.º/1/d) do Decreto n.º 2-C/2020.

[6] Distinção que propus em Crimes e Contra-Ordenações: da Cisão à Convergência Material, Coimbra Editora, 2016, p. 789 e s., fazendo corresponder ao crime de desobediência aquelas “hipóteses normativas em que do que se trata é de constranger um indivíduo à realização de um certo acto pessoal tipicamente concretizado ou de proibir certa conduta a alguém ou a um conjunto indeterminado de pessoas. Nestes casos o crime de desobediência não passa de uma “muleta” que serve de apoio à previsão da pena criminal, mas não desempenha qualquer papel de relevo na definição do conteúdo do facto típico. Na medida em que o próprio desenho típico dê a perceber que o bem jurídico primariamente tutelado é aquele que se encontra sob directa ameaça do acto ou omissão pessoais do destinatário da previsão legal ou da ordem legítima a que essa previsão se refere pode porventura falar-se em ilícitos de desobediência em sentido impróprio”.

[7] Alexandre Oliveira, “I. O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação – breves notas”, in: Estado de Emergência – COVID-19 Implicações na Justiça, e-book, CEJ, 2020, p. 365 e ss.

[8] António Brito Neves, “Crimes desobedientes – análise da base legal para as detenções por desobediência”.

[9] No sentido de que o art. 7.º da Lei n.º 44/86 não é susceptível de constituir “lei habilitante” da criminalização do confinamento obrigatório decidida pelo Governo, Alexandre Oliveira, cit., p. 371 e ss.

[10] Art. 32.º/1/b) do Decreto n.º 2-A/2020; art. 43.º/1/d) do Decreto n.º 2-B/2020; e art. 46.º/1/d) do Decreto n.º 2-C/2020.

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